Quando iniciei-me no BDSM e práticas afins, lá se vão já cinco anos, foi-me apresentada o que, jocosamente, chamo de sopa de letrinhas, ou seja, os princípios (ou alguns deles) que considero norteadores da prática no nosso meio.
Na época, como muitos, eu pensava que o Dominador era aquele que tinha poderes ilimitados dentro da nossa forma hierárquica e quase monárquica das estruturas de poder. No entanto, logo me avisaram que a monarquia não era absolutista, era constitucionalista, através do SSC , São , Seguro e Consensual.
Confesso que não tive qualquer dificuldade em entender o que significava isso mas fiquei pensando o porquê de tal necessidade de estabelecê-lo. Afinal, parece-me total e completamente razoável que a preocupação com a sanidade e a segurança fosse uma constante na relação que se estabelecia entre Dominante e submisso, ou seja, nas relações D/s.
No entanto, existem coisas sábias nesse mundo: logo aconteceu um rumuroso caso (que não convém resussitar aqui) para ver que, como dizia Voltaire, o bom senso não é algo tão bem distribuído como se imagina. Recentemente, ao ver outro caso rumuroso, o das violências da patroa contra uma garota em Goiania, vi que a margem que separa a violência do BDSM é algo não tão grande quanto se imagina.
Ver aquela menina amarrada na janela, como um bom bondagista faria, com a boca tapada com silver tape me fez pensar que há a necessidade , de fato, de um estatuto que defina com clareza essas fronteiras, não para qualquer um mas para nós mesmos.
E aí vai uma outra questão: de que forma essa “normatização” deve ser feita. Isso não é uma preocupação nova e nem se quer original, ao contrário. Já nas listas da USENET americana, onde surgiram e foram discutidos e definidos muitos desses princípios, houve uma frenética discussão que acabou consagrando o SSC como uma forma razoavelmente consensual de se pensar a questão.
No entanto, mesmo consagrada, essa definição mereceu algumas críticas, observações mais ou menos razoáveis aqui e lá fora e gostaria de destacar duas: o RACK e o SSS.
A sigla RACK significa Risk Aware consensual Kink, traduzindo literamente, Perversão Consensual com riscos determinados (ou conhecidos). Tomando como base a definição encontrada na Wipikedia , versão em inglês (http://en.wikipedia.org/wiki/Risk-aware_consensual_kink) , vamos esclarecer o que significa cada um deles:
- Risk-Aware (determinação de riscos): Ambos, ou todos o parceiros, estão bem informados dos riscos envolvidos na atividade proposta.
- Consensual: Conhecido esses riscos, ambos ou todos os parceiros, de espontânea vontade, oferecem um consenso preliminar para realizar a dita atividade.
- Kink (perversão): A atividade tida como classificada como sexo alternativo.
Muitas perguntas sobre a tríade São, Seguro e Consensual, o SSC têm chegado a mim. E sempre que leio ou que vou responder algo, não me limito a recitar conceitos, mas aproveito para repensa-los. Por isso estou repensando o SSC. Até porque o consensual que vem sendo pregado por alguns não é o consensual que eu vejo como o aplicável ao BDSM.
Tenho lido em muitos lugares que consensual é se discutir o que vai ser feito em uma sessão. O “submisso” diz o que “gosta” e o “dominador” obedece. Será que consensual é a submissão do dominador às vontades do escravo? Se for isso, eu não sou consensual.
Tenho ouvido que tudo que vai se fazer numa sessão deve ser combinado antes pelos parceiros. O “dominador” diz ao “submisso” o que gostaria e ele “autoriza” ou não e definem o “script” da “cena”. Será que consensual é a transformação de BDSM em teatro? Se for isso eu não sou consensual.
Tenho tocado em alguns “escravos” que defendem a posse de seus “donos” reclamando que eles não podem ter outros escravos, pois isto não é consensual. Será que consensual é transformar BDSM em casamento? Se for isso eu não sou consensual.
Tenho no paladar o amargo gosto de um BDSM “politicamente correto” onde o jogo é transformado em pantomima. O prazer está no “fake” transformando o BDSM num produto de mídia. Será que consensual é por uma pimentinha na baunilha? Se for isso eu não sou consensual.
Tenho cheirado uma vontade de conduzir o BDSM a uma plataforma onde a “moral” vigente possa conviver com algo até então execrável. Enfraquecer o sentimento para ficar mais fácil mata-lo. Será que consensual é transformar BDSM em perfumaria? Se for isso eu não sou consensual;
Li com a visão. Ouvi com o ouvido. Toquei com o tato. Tive o paladar. Cheirei com o olfato. Usei os sentidos. Sentidos. Senso. Sensual. Eu sou sensual e ser sensual é usar os sentidos. Para mim, BDSM deve ser São, Seguro e Sensual, SSS. E isto tem uma abrangência muito grande.
Sensual deve ser toda a situação que envolve os parceiros. Caso contrario, vira carnificina. Vira bandalheira, abuso, desrespeito. Sem sensualidade passa a ser Brutalidade, Despotismo, Sacanagem, Maluquice.
A sensualidade deve ter origem no bom. Naquilo que é bom para os parceiros. Naquilo que é bom para cada um Este Bom Senso deve nortear toda e qualquer relação e quanto mais intensa é a relação, maior deve ser também o Bom Senso. E uma das características do BDSM é a intensidade.
A sensualidade deve ser comum. Algo que é sensual para mim, não é obrigatoriamente sensual para o meu parceiro. Tenho um amigo muito querido, cujas idéias me fazem pensar muito, que adora cheiro forte de chulé. Isto é muito sensual para ele. Não é para mim. Nossa sensualidade não é comum. Jamais seriamos parceiros. Eu e ele não temos senso comum. Não temos consensualidade. Ser consensual é ter senso comum.
Então, pensando e sentindo tudo isso, refletindo que sensualidade é mais amplo que consensualidade, e que conseguiram desgastar e deturpar o sentido de consensual, passo a ter pra mim como tríade o SSS. São, Seguro e Sensual. Quem concordar, me acompanhe. Quem não concordar, mostre-me outro caminho. Estarei sempre pronto a repensar…
Klaus
Lendo aqui atentamente, gostei da interpretação que Klaus fez do sensual-consensual. Não vejo, porém, a negociação como algo que pretende estabelecer o que um quer e o outro tem que obedecer. Minha visão da coisa vai muito além disso, até porque concordo que se for assim, não tem nenhuma graça, melhor fazer teatro no Sesc. Pode até render prêmios de interpretação…
O que vejo de relevante em toda a negociação, hoje tão mais facilmente entabulada via internet, é descobrir o outro e no outro aquilo que nos fascina, unir as pontas que andam soltas pela vida, juntar partes que se procuram. E não falo aqui do lado romântico da coisa, que se vier sempre será bem-vindo e, vamos convir, inevitável, mas de fantasias mesmo: se estou caçando, quero a presa que melhor satisfaz meu apetite, aquela que saboreio com mais gosto. Se não tem tu, na selva, vai tu mesmo. Mas o ideal é procurar sempre aquele ou aquela cuja sensualidade permitirá consensualizar com a minha realidade.
Também concordo com a visão de que desgastaram pelo uso indiscriminado o sentido da consensualidade. E que muitos chegam aqui e se encantam tanto com as regras e manuais que exigem o tal SSC ao pé da letra e politicamente correto, que acabam por perder a essência do jogo BDSM, que é descobrir e superar os próprios limites, sempre, indo além do que imaginamos poder ir. Sem isso, para mim ao menos, fica tudo muito pobrinho…
Maria
Que bom poder contar com seu comentário, Maria! Sempre um acréscimo à todos nós! Beijos! Obrigado pela leitura!
Olá,gostei muito do post,aprendi um bocado sobre Rack, SSC e SSS… Parabéns pela iniciativa.
Continuando… (Não resiti)
Na minha modesta opinião, o C do consensual é só uma forma de evitar que um dominador “pegue” alguém na marra e as coisas acabem na delegacia policial, é uma vacina contra violência…
Ou seja, uma atividade só pode ser classificado como BDSM se as duas partes concordam, fora isso não precisa de combinação, teatrinho, nada disso, de qualquer forma acho importante pensar e repensar… Quando ao S de sensualidade do SSS fica muito amplo e foge da essencia de tornar nossa prática sexual lícita e mais aceitável. Não acha?
OLá!
Tenho lido sobre o tema há mais ou menos um mês, mas entro em chats sobre BDSM há mais de um ano, e sinto desejo pelo que vejo na internet, contos, imagens etc.
E em um chat conheci uma ” Sub”, na verdade ela não conhece nada ainda, mas também sente desejo muito forte e ao mesmo tempo tem medo, mas quer ser uma “sub” o desejo é muito forte, estamos conversando no MSN, tenho lido em vários sites sobre iniciação de um Domme, relação D/s etc. Mas sinto uma certa insegurança.
Que conselhos pode me dar para o primeiro encontro?
Vanderlei
Achei muito interessante todo comentário acerca do consensual e do sensual. Creio que tudo que vira muito certinho, muito regrado, combinado, perde a graça. A antecipação, a falta de surpresa perde a graça. Concordo sim com a superaçao dos limites, isso tem que ser feito de forma consensual, mas nao necessariamente com tudo estabelecido passo a passo do que será feito.
Penso que a sensualidade no caso de uma sub está em ser conduzida pelo inesperado, pelo desconhecido, mesmo que esse desconhecido seja dentro do limite dela. O Dom, o verdadeiro Dom sabe respeitar isso, sabe transpor barreiras dentro desse limite. Quando uma relaçao s/M passa a acontecer de forma séria, verdadeira, creio que sim, as coisas devam ser acertadas, e os limites também, mas daí ja passa a valer o consensual, pois ambos sabem onde estão, onde podem ir e onde querem chegar.
Achei interessantíssimo o Post e os comentários.
Não faço parte desse mundo, mas tenho lido alguma coisa já há algum tempo.
Como mera “simpatizante”
Acredito que enquanto as regras estiverem sendo discutidas, há mais chances de haver mais adeptos comprometidos com a segurança, o que pode manter o grupo saudável.
Acredito sinceramente na elevação dos limites o que realmente parece se bloquear se houver a insistência na necessidade de coreografia prévia.
Quem gosta desse jeito pode se satisfizer “estudando” o Kamasutra ao lado da cama.
O que li a respeito, falava da necessidade de uma palavra de “segurança”.
Ela realmente contribui com a consensualidade?
Thara, bem vida!
Algumas das pessoas com as quais me relacionei no meio e, entre elas, uma submissa anterior, afirmou que eu sou “obcecado” por segurança. Particularmente, eu acho que a segurança aproxima sim o casal (ou arranjo outro) da consensualidade através do desenvolvimento de um vínculo de segurança.
Segura de que o Top tem a segurança com básica, há sim uma tendência em “ir-se além”, “vencer barreiras”, aumentando a consensualidade.
Eu me dou pq há alguém que há alguém que receba e cuide.
Convido-a para meu outro blog do meu novo momento: http://janussw.blogspot.com.
Saudações
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Gostei esse web-site. a idéia é muitíssimo benéfico. Irei regressar repetidamente.